Offline
Loja
ANGELA RO RO & JIMMY CLIFF: vozes que incendiaram a década de 70!
Saquarema, quando o passado ainda respirava futuro
Por Wellington Lima Amorim
Publicado em 04/12/2025 13:38 • Atualizado 04/12/2025 13:46
NOTÍCIAS

Os números da Ipsos, tão frios quanto lâminas, apenas confirmam uma intuição antiga: quase dois terços das pessoas prefeririam ter nascido não em 2025, mas em 1975 ou, por que não, em 1976, já que um ano é apenas o desdobramento sensível do outro, a mesma chama soprada por ventos distintos. A escolha não é mero saudosismo: é tentativa de reencontrar uma fresta de ar num presente que parece estreitar-se como um corredor sem janelas.

E se existe um lugar onde essa nostalgia encontra corpo é Saquarema, naquele calor de 1976, quando a cidade virou palco improvisado de uma liberdade que se acreditava irredutível.

A década de 70, apesar de suas feridas fundas, era movida por uma vitalidade inquieta. A liberdade era uma indisciplina bonita: o cigarro aceso que passava de mão em mão, a risada que ecoava antes de qualquer autorização, o corpo que dançava sem pedir licença ao mundo. Havia censura, medo, mas havia também uma teimosia luminosa, como se cada gesto dissesse: não vão nos deter por completo.

E Saquarema, em 1976, era esse gesto. O festival de rock que tomou a cidade não foi apenas evento: foi rito. Jovens chegavam pelo asfalto quente como peregrinos sem templo, carregando mochilas magras, contradições enormes e uma fé improvável na música. A lagoa, vendo tudo, parecia mais ampla naquela época, talvez porque as pessoas, reunidas ali, ainda acreditassem que o futuro podia ser maior que o presente.

Mas é importante lembrar, com honestidade poética, que 1975 ou 1976 não foram anos ingênuos, e não estamos falando de ausência de sofrimento. Mas de um mundo ainda não completamente apodrecido pela velocidade digital, carregado de dores que não cabem em estatísticas.

Os jovens americanos, por exemplo, ainda tentavam enxugar o sangue do Vietnã, que não secava. Voltavam mutilados, quando voltavam, fantasmas agarrados às costas, ouvindo helicópteros dentro da própria cabeça. Eram meninos que partiram acreditando servir à pátria e retornaram sem saber se ainda tinham uma.

E, deste lado do continente, as veias abertas da América Latina, pulsavam guerrilhas inteiras. Há nomes que não aparecem nos jornais de hoje, mas que jazem na memória subterrânea de nossas colinas, selvas, prisões improvisadas.

Eram jovens também de rosto magro, olhar convicto que desapareceram como se a própria terra os tivesse engolido para esconder o brilho perigoso da liberdade. Lutaram contra tiranias domésticas, mutilação da palavra, a noite que insistia em não amanhecer. Tombaram acreditando que um país é um corpo coletivo que não deve suportar correntes. Esse era o pano de fundo dos anos 70: liberdade e sofrimento entrelaçados como fios de cobre que ainda conduzem energia.

Foi sobre esse solo contraditório que Angela Ro Ro subiu ao palco em Saquarema. Sua música era a síntese das tensões do tempo: blues ferido, rock insolente, piano clássico que parecia rezar enquanto se insurgia. A influência de Janis Joplin surgia na intensidade que rasgava o ar e Jimi Hendrix, na coragem de transformar dor em faísca. Angela não cantava para entreter: mas para lembrar que viver, mesmo quando dói, ainda é verbo ativo.

O público, uma multidão de rostos queimados de sol, ouvia com a concentração de quem sabe que certas vozes nascem de vulcões interiores. Aquela mulher, ainda no início de carreira, já expunha uma verdade madura: a alma humana tem mais rugas que o corpo.

E, em outro ponto da tapeçaria musical dos anos 70, estava Jimmy Cliff, com o lançamento do álbum que levou seu nome (renomeado para “Wonderful World, Beautiful People” nos EUA) em 1970, o sucesso internacional com o filme e a trilha sonora de The Harder They Come em 1972, e gravações de álbuns como Struggling Man (1974) e Follow My Mind (1975), e assim Jimmy tecia seu próprio fio.

Seu reggae, que atravessou oceanos, carregava a leveza possível em meio ao peso mundial. Falava de resistência com cadência, esperança dançante, fé que não exige templo. Cliff foi e ainda é a tradução melódica da teimosia humana em continuar acreditando mesmo quando tudo parece desabar. A ligação entre Cliff e Angela não se dá apenas pelo período, mas pela compreensão de que a música é uma forma de respirar quando falta ar. Ambos compreenderam que cantar é gesto político, que melodia é abrigo, que quem sobe ao palco leva consigo uma multidão silenciosa que também deseja ser ouvida.

É por isso que, quando lemos que 55% das pessoas acreditam que seus países eram mais felizes em 1975 (ou em 1976), não estamos diante de delírio nostálgico, mas de uma memória sensorial: o mundo parecia menos truncado, espesso, sufocante. Mesmo com guerras distantes, com guerrilhas próximas, perdas profundas, havia uma sensação de que a história ainda podia mudar de rumo.

Talvez seja isso que tanta gente busca quando olha para trás: não o passado em si, mas a lembrança de um tempo em que o futuro era uma porta aberta e não um corredor estreito.

Saquarema, naquela década, provou isso: que a Arte pode ampliar o ar, que a música pode sustentar o corpo e que um festival pode ser mais que espetáculo, mas ser respiro. E é esse respiro, vindo de 1976, que ainda hoje toca nossos ombros, como quem diz: sim, o mundo era duro… mas nós também éramos vivos.

Prof. Dr. Wellington Lima Amorim - Contrabandista de conceitos: Filosofia, Psicanálise e as ruínas do mundo moderno.

Comentários
Comentário enviado com sucesso!