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Não quero mais andar na contra mão
Por Wellington Lima Amorim
Publicado em 08/12/2025 12:08 • Atualizado 08/12/2025 13:31
NOTÍCIAS

Há canções que nascem tortas e, por isso mesmo, revelam melhor a coluna quebrada de um país. A música de Raul Seixas, aquela pequena narrativa de recusas sucessivas, nasceu assim: meio rindo, tropeçando, ressacado e ainda assim, ousou dizer mais verdade do que convinha aos ouvidos vigilantes da época. Por isso foi censurada. E talvez porque a sinceridade, quando vira música, passe a ter uma força política que o poder teme mais do que discursos inflamados.

A letra começa como um cortejo de amizades transnacionais, Colômbia, Bolívia, Argentina, trazendo suas dádivas duvidosas, seus presentes carregados de riso e malícia. A amiga colombiana aparece com aquele fumo que, segundo ela, “tão bom ele nunca viu”. A boliviana empurra o pó “tão puro”. A tia argentina, mais elegante, mais mundana, oferece um perfume raro, impossível de encontrar nos balcões nacionais. Todas riem. Riem porque não entendem a recusa de Raul ou do personagem que ele encarna, esse sujeito que já dormiu no chão da própria vida e agora aprendeu a levantar sem pedir bênção a ninguém.

E é nesse ponto, justamente nesse ponto onde o riso encontra o limite, que entrou a tesoura da censura. Os censores da ditadura não toleravam referências a drogas, nem mesmo quando, como na música, essas referências apontavam para a recusa, para o desgaste, para o chega. Para eles, bastava mencionar o fumo, o pó, a bebedeira, o cair no salão, qualquer evocação já seria “apologia”, “risco moral”, “incitação indevida”. Não importava que Raul estivesse dizendo “não, não, não, não”; que estivesse justamente rejeitando tudo aquilo. O Estado jamais soube ler nuances. Sua pedagogia era a da tesoura: cortar antes de compreender.

Assim, a música foi vetada inicialmente. Entrou na fila dos “impróprios”. Precisou passar por parecer, recurso, versão modificada, esses rituais absurdos que tentavam higienizar a vida, como se fosse possível lavar a existência com água sanitária institucional. Havia um temor, um receio, um desespero silencioso: o medo de que a arte expusesse o que o Estado queria esconder. E Raul, com sua ironia de profeta bêbado, expunha demais.

Mas voltemos à crônica. O narrador, cansado, calejado, atravessado por uma espécie de lucidez que dói, recusa tudo, o fumo, pó, perfume. Recusa até o carnaval, esse delírio coletivo tão brasileiro quanto as nossas contradições. Sua recusa não é moralista, mas existencial. É o tipo de negação amadurecida que nasce quando alguém já experimentou todos os becos e finalmente decide voltar para casa. Heidegger chamaria isso de reassumir o próprio ser; Camus veria aí a dignidade que só nasce quando o homem diz não ao absurdo que o domina; Nietzsche reconheceria o instante em que o espírito ferido desperta o leão.

“Cansei de acordar pelo chão.” E o chão é sempre mais do que um chão. É o lugar onde o corpo cede, onde a consciência falha, onde o sujeito perde o fio da própria narrativa. O chão é o símbolo maior da rendição involuntária, uma espécie de anti-liberdade. Por isso, quando Raul diz que cansou de amanhecer ali, o gesto é revolucionário, manifesto íntimo.

O perfume argentino é o detalhe mais preciso, a ironia final: mesmo aquilo que poderia ser considerado refinado, elegante, importado, recusado. Porque, no fundo, todos esses objetos oferecidos pelas visitas estrangeiras eram apenas máscaras, pequenas anestesias, identidades prontas para serem performadas. E o sujeito da música já se cansou de performar. Já se cansou de ser outro. Agora quer apenas ser, e isso, paradoxalmente, é o gesto mais subversivo de todos.

A censura, com sua habitual miopia, não percebeu a beleza desse gesto, nem a sua gravidade. Vetou a música porque pensou que ela falava de drogas; quando, na verdade, ela falava da libertação delas. Vetou porque viu perigo onde havia cura; renúncia; desvio, finalmente, caminho. A contramão, aqui, não é metáfora moral, mas ontológica: o desvio de si mesmo, a vida que se arrasta nas sombras, a existência que perde o tônus. Raul, calejado, decide não andar mais por ela. Repete o “não” como quem repete um mantra de sobrevivência.

E esse “não, não, não, não!”, que a censura tentou calar, acaba ressoando como um canto discreto de autonomia. Um grito pequeno, íntimo, mas imenso: o direito de dizer “basta” a uma vida que já não lhe pertence. A música foi censurada. E justamente por isso revela algo vital: quando o Estado teme até mesmo a palavra não, é porque sabe que ela contém mais liberdade do que qualquer decreto. E talvez seja esse o milagre de Raul: esconder, sob o verniz de humor, o gesto mais filosófico de todos, o de assumir-se autor do próprio caminho, mesmo que isso implique decepcionar o mundo inteiro.

Porque, às vezes, para não andar na contramão da vida, é preciso contrariar não só as amigas colombianas e bolivianas, não só a tia argentina, mas também o próprio país que tenta nos dizer o que podemos ou não cantar. E Raul cantou.  Cantou rindo, tropeçando, recusando e, com isso, deu ao “não” a dignidade de um renascimento.

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                               Dedico a Caroline Bilhar!

 

PS: O álbum que contém a música Não Quero Mais Andar na Contramão é A Pedra do Gênesis foi lançado em 22 de agosto de 1988.

 

Prof. Dr. Wellington Lima Amorim - Contrabandista de conceitos da Filosofia e Psicanálise nas ruínas do mundo moderno.

 

 

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